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O Evangelho Segundo Jesus Cristo – José Saramago (12/2017)

“Homens, perdoai-Lhe (a Deus), pois ele não sabe o que fez.”

Esta obra prima do Saramago segue a mesma premissa de “O Cordeiro” (ou melhor, o Cordeiro segue a mesma premissa deste livro): contar a estória de Jesus Cristo de outro ponto de vista que não os existentes na Bíblia e cobrindo também os períodos ignorados nos evangelhos (praticamente tudo desde o nascimento até os 30 anos). Neste caso, a narração é conduzida pelo próprio Cristo, feita em terceira pessoa.

O estória abrange desde a hora da concepção (que ocorreu naturalmente, através de José), passando pela infância, adolescência e dando muita atenção ao momento em que Jesus descobre o seu destino e as consequências dele. O destino é apenas servir de instrumento para que o “fã clube” do seu pai aumente de tamanho, inflando assim o seu ego (e desta forma ele poderá se gabar junto aos outros deuses). As consequências, além do próprio sofrimento do filho, serão milhares de mortes, nas mais terríveis formas, ao longo de séculos.

“O único Deus sou eu, eu sou o Senhor, e tú és o meu Filho, Morrerão milhares, Centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, mas por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder. O nevoeiro afastou-se, para onde estivera antes, via-se uma pouca de água ao redor do barco, lisa e baça, sem uma ruga de vento ou uma agitação de barbatana passando. Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue.”

De uma forma muito mais sutil que em O Cordeiro, mas muito mais contundente, Saramago questiona a filosofia por trás do cristianismo e de quebra por trás das demais religiões Abraonicas. É um livro para fazer pensar. A forma como ele questiona crendices e mitos que não fazem sentido lógico algum é fantástica. Especialmente porque fosse o ser humano dotado de maior inteligência, estes mitos já estariam há tempos na categoria de folclore, daqueles que você dá risada e se admira como podem ter guiado a vida de milhões de pessoas (e custado a vida de tantos outros milhões). Pensando bem, nem precisaria ser muito inteligente, só um pouco.

Como já disse anteriormente, o estilo do Saramago é complicado de acompanhar e exige muita atenção, mas ao mesmo tempo apresenta uma beleza única. Entre as obras dele que eu lí até hoje (acho que umas 6 ou 7) esta subiu para o topo e é um dos melhores livros que eu já lí.

Be happy 🙂

História do Cerco de Lisboa – José Saramago (09/2017)

Interessante ter lido este livro logo após o Manual de Pintura e Caligrafia, já que os dois usam o mesmo “mote” como linha mestra: uma crise existencial que faz com que o personagem principal cometa um arroubo dentro de sua atividade profissional, o que acaba por mudar os rumos de suas vidas.

No caso da História do Cerco de LIsboa, Raimundo Silva, um notório revisor literário, ao trabalhar em um livro que relata o fato histórico da retomada de Lisboa, que ficou sobre controle dos Mouros (islâmicos) entre os séculos VIII e XII, resolve adicionar uma negativa, contrariando os fatos históricos (da forma como são conhecidos). Inicialmente ele se vê às voltas com a culpa de ter, deliberatamente, tentando alterar a história.

Porém o fato em sí não causa tantos inconvenientes quanto Raimundo imaginava, e acaba por abrir uma nova possibilidade profissional: reescrever a história à partir do ponto em que ela foi modificada por ele mesmo.

À partir dai o revisor / escritor vai revisitando os fatos e os lugares, já que a estória (do Saramago) também se passa em Lisboa. Com toda a liberdade literária, ele escreve um interessante romance e, no processo de escrever, também vai trazendo fatos da história verdadeira (através das suas pesquisas e das possibilidades para a história).

A leitura é mais fluida do que o do Manual. “Fluída” para o padrão Saramago, que não usa uma organização normal em parágrafos e diálogos, mas escreve tudo (narração e diálogos) continuamente, sem identificar o emissor da frase, apenas separando-os por vírgula. É cansativo inicialmente, mas depois de pegar o embalo fica um pouco mais fácil (alguns trechos requerem uma leitura mais detalhada e eventualmente releitura).

Além de tudo, foi bem interessante para mim, porque como fui há alguns meses à Portugal, ficou bem fácil montar o “filminho” na minha cabeça dos lugares por onde Raimundo anda durante a estória.

Uma diferença interessante entre o Manual e o Cerco é que no Manual, o personagem que enfrenta a sua crise existencial está na faixa dos quarenta anos, enquanto no Cerco, o personagem está na fase dos cinquenta. Levando-se em consideração que os livros foram lançados com um intervalo de pouco mais de dez anos e que, segundo os biógrafos de Saramago, o Manual é uma obra biográfica. Imagino que o Cerco também tenha algo do próprio Saramago.

Be happy 🙂

Manual de Pintura e Caligrafia – José Saramago (07/2017)

Comprei este livro (e mais dois do Saramago) numa visita a Livraria Lello, no Porto, em Portugal, considerada por muitos a livraria mais bela do mundo. Acabei comprando mais por uma obrigação moral (já que estou com uns doze na lista): visitar uma livraria e não comprar um livro, como fazia quase a totalidade dos visitantes (mesmo tendo um “rebate” do valor da entrada na compra de livros) é um pecado.

Segundo a descrição na contracapa, o livro é uma obra autobiográfica do Saramago. Não tenho conhecimento da biografia deste grande autor (vencedor do Nobel de literatura em 1998), portanto não tive capacidade de associar trechos do livro com a vida dele. Talvez foi uma falha minha não ter tentado saber um pouco mais sobre o autor antes de ler o livro.

De qualquer forma, mesmo como uma “estória” é um livro bastante interessante: ele conta, em primeira pessoa a estória de um pintor retratista (destes que fazem quadro com imagens de pessoas reais) que, em meio a uma crise de meia idade (o livro dá a entender que o pintor se encontra na faixa dos 40 anos, por ter 20 de profissão e não ter terminado a faculdade de belas artes) e a um momento político conturbado em Portugal (o presidente era Marcelo Carneiro, substituto de Salazar no chamado Estado Novo português, a ditadura que durou até 25 de Abril de 1974, fato relatado na última página do livro, que começara a ser escrito um ano antes) começa a se aventurar por outra arte, a da escrita. Genialidade do Saramago ele se “retratar” (sem trocadilho) como um pintor que vai se aventurar justamente na área que ele dominava.

O personagem começa a aprender das artes e oficios da escrita, enquanto faz um apanhado da sua própria vida até então, analisando a sua criação,  seus relacionamentos, seu papel no mundo, enfim, fazendo uma longa sessao de autoconhecimento que o leva a, inclusive, se redescobrir como um artista plástico.

Interessante notar a cabeça a muito a frente do tempo de Saramago. 

O livro não é melhor que o “Ensaio Sobre a Cegueira” ou “As Intermitências da Morte”, mas ainda é um Saramago e, como sempre, uma ótima leitura.

Be happy 🙂

As Intermitências da Morte – José Saramago (19/2015)

As Intermitencias da Morte“O que aconteceria se a morte resolvesse tirar uma licença?” é o mote principal deste livro do Saramago (autor também do famoso “O Ensaio Sobre a Cegueira”). Em um país fictício, regida por uma monarquia que se imagina ser uma daquelas mornarquias decorativas européias, depois da virada de ano a morte resolve simplesmente “não aparecer”.

Muitos das pessoas que estavam praticamente a expirar, simplesmente ficam no estado em que se encontravam, mas ainda vivas. O mesmo acontece com as vítimas de acidentes, assassinatos ou qualquer outro desfortunio: o coração continua batendo, os principais órgãos estão funcionando, mas a pessoa entra em um estado de catatonia, um vivo morto (ou morto vivo).

À partir dai, Saramago descreve os desdobramentos das consequências de algo que inicialmente parece ser uma boa coisa, como a imortalidade, mas que se mostra um verdadeiro desastre sob vários pontos de vista. O cartel dos agentes funerários, sem ter o que fazer depois da extinção da morte, pressionam o governo para que este obrigue os cidadãos a darem um “enterro digno” a seus animais como forma de manter esta indústria funcionando. As companhias de seguros decidem pagar apólices por idade de morte presumida, já que, se ninguém mais vai morrer, as pessoas irão deixar de fazer seguro. Até a igreja pede ao governo que tome uma providência pois, sem vida após a morte, não há sentido na existência das religiões.

Depois de alguns dias de muitas alegrias com a nova possibilidade, os habitantes começam a perceber que os entes próximos se tornam um fardo para eles quando deixam de morrer por velhice, e extrapolando no nível do país, para toda a sociedade, pois se ninguém mais morre, bastariam poucas gerações para ter uma infinidade de idosos imortais sendo cuidados por pouquíssimos jovens.

À partir destas questões surge a Máphia (com PH, e que lembra muito, em estrutura e atuação, o PCC paulista), que através de acordos excusos com autoridades e corrupção de agentes públicos, consegue, mediante o pagamento feito pelas famílias, dar um jeito de “matar os imortais” (não vou contar como para não soltar spoilers).

Toda esta narrativa, desde o início até o retorno da morte (também não entrarei em detalhes) é feita com um humor ácido e uma ironia fina e o país fictício nos faz lembrar muito bem o Brasil, ou qualquer outra república de bananas mundo afora.

Porém, ao concluir a estória principal, Saramago deixa um gancho para uma segunda parte onde, sem deixar de lado o humor, conta a história de amor da morte pela vida, ou como gosto de chamar, vida plena, de um simples violoncelista. Nesta segunda parte ele entra mais fundo em questões filosóficas (e existenciais) com as quais ele flerta na primeira parte do livro.

Saramago tem um estilo um pouco complexo de escrever: ele vai colocando os diálogos dentro do parágrafo, junto com a narração, sem dar muitas indicações de onde começa a fala e de que personagem ela é, separando-as apenas por vírgulas, ao invés de criar parágrafos e usar o travessão. Isto também torna a leitura um pouco complexa e aconselho ler cada capítulo de uma só vez, sem “quebrá-lo” em várias partes, para não complicar. Mas apesar disto (e do português de Portugal, que às vezes exige um pouco mais de atenção), o texto ainda é fluído e daqueles que você não consegue parar de ler, mesmo ao final do capítulo.

Tanto que posso dizer que, apesar destes pesares, foi um dos melhores livros que já li na minha vida e estou, desde que terminei, pensando qual dos meu top 10 teria que sair da lista para dar lugar à este.

Be happy! 🙂