Arquivo anual: 2023

Os sonhos não envelhecem – Márcio Borges (03/2023)

os_sonhos_nao_envelhecemMárcio Borges, um dos mais importantes letristas que surgiram do movimento Clube da Esquina, traz esta biografia que na verdade são várias. Como linha principal é antes de tudo uma biografia “semi-autorizada” de Milton Nascimento, o maior expoente do movimento. Mas é também uma autobiografia. E uma biografia do movimento em si (que gestou ou deu exposição a uma penca de músicos fantásticos). E uma biografia da família Borges (da qual também faz parte Lô Borges, irmão de Márcio e outro expoente do movimento). E infelizmente é também uma “biografia” de um momento triste da história do Brasil.

É óbvio que, com Marcio sendo responsável por letras como Clube da Esquina 2 (que segundo ele era pra ser um instrumental de Milton e Lô e ele letrou “às escondidas” – e cujo um verso dá nome ao livro), Um Girassol da Cor de Seu Cabelo (devidamente explicada no livro) e Viola Violar (uma exemplo de fora do álbum Clube), o texto não deixaria de ser maravilhoso, em termos de estética e formatação.

Daqueles livros que a gente não consegue parar de ler, ao mesmo tempo em que precisa ser apreciado, e não devorado (hmmm….já usei esta idéia em The Invention of Solitude). Então coloque o disco do Clube para rolar na “vitrola” (caso você consiga ler e ouvir música ao mesmo tempo – algo que não consigo mais) e aprecie o livro com ou sem moderação.

P.S. minha opinião sobre o livro não foi, de forma alguma, enviesada pelo fato de eu achar o movimento Clube da Esquina o mais importante da música brasileira. Juro!

Be happy 🙂

Queda Livre: Ensaios de Risco – Otávio Frias Filho (02/2023)

 

queda_livre_ensaios_de_riscoO autor, Otávio Frias Filho, foi durante muito tempo diretor de redação e edição (não ao mesmo tempo) do jornal Folha de São Paulo e do Grupo Folha (ao qual o jornal até hoje pertence), respectivamente. Apesar de ter formação em direito (com pós-graduação em ciências sociais), provavelmente por ter trabalhado toda a vida na imprensa, tinha um texto que não deve nada a jornalistas de formação. E isto fica muito claro e notório em “Queda Livre: Ensaios de Risco”, uma coleção de 7 ensaios resultantes de experiências a que Otávio se propôs, tanto com o intuito de produzir reportagens “imersivas”, mas principalmente para se desafiar.

“Queda Livre”, o primeiro dos ensaios, relata um salto de paraquedas. “Viagem ao Mapiá” (o segundo) as experiências com o Santo Daime. No terceiro ensaio, “A bordo do Tapajós”, a experiência de passar um dia dentro do submarino brasileiro Tapajós. Estas três experiências e seus respectivos textos são interessantes, mas ao menos para mim são ensaios e desafios sem muito apelo, que poderiam ter sido encarados por qualquer outra pessoa, jornalista ou não, e que renderiam textos de qualidade. É uma leitura interessante, acima da média, mas ainda assim não me deixaram aquela sensação de “que baita texto!”

A partir do quarto ensaio, “O Terceiro Sinal”, é que o livro realmente começa a se diferenciar para mim. Neste ensaio, ele conta sua experiência em atuar no Teatro Oficina, do recém falecido Zé Celso. Nesta experiência Otávio parece realmente se entregar de corpo e alma. E é também onde ele começa a se entregar para o leitor.

O quinto texto, “No Caminho das Estrelas”, a experiência encarada e entregue é de percorrer o caminho de Santiago de Compostela. Com certeza existem muitos relatos e livros sobre esta experiência, mas novamente Otávio se entrega e se abre para o leitor sem reservas, o que, juntamente com o texto muito bem escrito, torna a leitura deliciosa.

Mas o ápice da coleção são os últimos dois ensaios.

Em “Casal Procura” o autor se joga no “submundo” dos tabus sexuais: voyerismo, trocas de casais, sexo grupal, sexo com desconhecidos, entre outros. O autor novamente se abre, expondo a desilusão amorosa que o levou a explorar este mundo (ao ponto de ficar viciado!). Não estou fazendo juízo de valor quando usei “submundo”, mas foi a palavra que achei para delinear práticas que não são aceitas e/ou bem-vistas pelas sociedades, especialmente a hipócrita sociedade brasileira.

O último ensaio, “O Abismo”, é o mais denso de todos. Nele o autor narra sua experiência como voluntário do CVV (Centro de Valorização da Vida). Novamente o autor se abre, expondo seus próprios demônios. E mesmo fazendo relato de uma experiência ligada a um tema tão pesado como o suicídio, Otávio consegue fazer um texto que ao mesmo tempo ameniza mas ainda consegue dar a devida gravidade ao assunto.

Uma outra coisa que eu gostei do livro (até nos três primeiros textos – os que eu achei “comum”) são as inserções de história, filosofia, literatura, tudo muito bem referenciado (só faltou ter nota de rodapé!). Mania de jornalista ou advogado?

Be happy 🙂

Não Verás País Nenhum – Ignácio de Loyola Brandão (01/2023)

nao_veras_pais_nenhumA única obra do Ignácio de Loyola Brandão que eu conhecia até pouco tempo era “O Verde Violentou o Muro”. Achei o texto dele muito bom, mas este livro é uma coleção de pequenos textos que ele escreveu sobre os períodos em que morou ou visitou Berlin (a cidade mais legal do mundo!). Não sei por que cargas d’água (ou ao menos não me lembro porque) “Não Verás País Nenhum” entrou na minha lista de livros em Português a ser adquirida quando fosse ao Brasil. E ainda bem que entrou.

Um breve resumo desta distopia tupiniquim (que não deve em nada para 1984): após um golpe de Estado, conhecido como “A Grande Locupletação”, um regime autoritário se instala no Brasil (o regime é conhecido como “Esquema”). Toda a produção (cientistas) e disseminação (professores, jornalistas) de conhecimento foi sendo abolida aos poucos pelo regime.

Aos poucos, o país foi sendo desmantelado e as partes vendidas a outros países ou corporações internacionais. O que sobrou se concentra na região sudeste (a história se passa na Grande São Paulo). Neste resto de Brasil, os recursos naturais estão praticamente esgotados e o pouco que resta ou é direcionada para uma elite formada pelos Militecnos (militares que compõem toda a espinha dorsal do Estado, porém “não tem cérebro, tampouco coração”) e pelos “Os que se Locupletam” (não ficou claro quem seriam, mas o livro dá a entender que seriam uma pequena elite não militar formada pelos poucos milionários e políticos que restaram).

A maior parte da população sobrevive através de alimentação sintética (alimentos “factícios”) e vive nas grandes cidades, em apartamentos minúsculos, convivendo com lixo acumulado e tendo todo o seu deslocamento estritamente controlado.

Nestas grandes cidades, a “segurança e ordem pública” é garantida pelos Civiltares, que basicamente são civis armados (a população passa metade do tempo rastejando, tentando evitar os tiros e as “bombas de efeito desmoralizante” dos milicianos Civiltares) que “combatem o crime” (ou o que eles determinam como crimes). E aí, por exemplo, quando eles devolvem uma carteira furtada, já fazem o acerto de sua “taxa” ali na hora (“para evitar burocracia”) e dão um sumiço no meliante.

Todo o fluxo de informação é controlado pelo Estado (através dos Militecnos) e evita-se “notícias ruins” (e aí de quem “torcer contra”). Todos devem “regozijar-se com o ouro dos garimpos, com a madeira que se pode exportar, com as safras imensas das terras férteis [que também são exportadas]”.

Notaram alguma semelhança com o Brasil de 2019 até 2022? Querem mais? O sobrinho do personagem principal, Souza, é um Militecno que tem um problema intestinal (provavelmente causado pelos alimentos sintéticos – como vários outros adultos da mesma geração) e anda com uma “bolsa de cocô” (bolsa de colostomia).

Sim, o livro publicado pela primeira vez em 1981 parece ser o guia, a bussola, a bíblia do Bolsonarismo. Também tem algumas passagens que lembram The Handmaid’s Tale (que foi lançado em 1985). Tem até citações similares ao “Arbeit macht frei” do nazismo sendo empregada pelo Esquema (o Roberto Alvim curtiu isto!).

E apenas citei algumas das “coincidências”. Se bem que a impressão que tenho é que na verdade todo o livro serviu mesmo como um manual de instruções para o horror que se instalou no Brasil nos últimos anos.

Demorou pra Netflix transformar o livro em uma série!

Be happy 🙂

War and Peace and War – Peter Turchin (06/2022)

war_and_peace_and_warCom o subtítulo de “The Rise and Fall of Empires” (a ascensão e queda de impérios – numa tradução livre) e usando conceitos e técnicas da cliodinâmica, uma área multidisciplinar que tenta explicar a história através de vários pontos de vista (econômico, cultural, demográfico, etc.) e usando várias ferramentas das ciências exatas, Turchin tenta elucidar quais são as circunstâncias que possibilitam a ascensão de impérios. E quais são as circunstâncias que levam estes mesmos impérios ao fim.

Segundo a hipótese de Turchin, a principal razão para ascensão de impérios é a coesão social: uma sociedade onde seu povo se vê como uma nação, com os mesmo objetivos e anseios, e onde existe confiança entre os membros, tem a chance de se expandir e conquistar, muitas vezes absorvendo, outras nações cuja coesão não é tão forte. Do mesmo modo, quando o tecido social começa a se esfacelar, são grandes as chances de um império ruir.

O autor se baseia bastante no conceito de assabia, muito divulgado pelo pensador tunisino Ibne Caldune durante a expansão islâmica ocorrida no século XIV. A expansão islâmica em si já traz um dos fatores geradores de coesão: a religião. Além do exemplo do Islã, as próprias cruzadas e a consequente expansão da Igreja Católica são claros exemplos de expansão imperial baseada em coesão motivada por razões religiosas.

Turchin também explora um pouco a religião como um fator que pode aumentar a assabia entre indivíduos que não partilham da mesma localização geográfica, língua e etnia. Cabem às religiões também serem um dos fatores com capacidade de aumentar a assabia nos dias de hoje, já que alguns dos outros fatores (como as “faulty lines” – explicadas abaixo) são mais difíceis de ocorrer atualmente.

Um outro fator histórico que sempre gerou aumento de assabia, e que Turchin argumenta ser o fator principal responsável pela ascensão dos impérios Romano, Russo, Mongol, e a maioria dos demais impérios surgidos até cerca de 500 anos atrás, eram as disputas por recursos. Estas disputas ocorriam normalmente no que ele chama de “faulty line”, que é a fronteira onde as civilizações se chocavam e, portanto, disputavam recursos.

O grupo que conseguia maior coesão, via de regra, subjugava o grupo com menor coesão, e assim movia esta fronteira adiante, aumentando desta forma sua nação até encontrar uma outra fronteira com outra civilização. E então as pressões se reiniciavam. As nações que viraram impérios foram as que mais conseguiram expandir estas fronteiras enquanto absorviam os povos subjugados. O “nós contra eles” é o principal fator de coesão nestes casos.

E então ocorre o ciclo de decadência: depois de se expandir, começam disputas internas, na maioria das vezes causadas pelo aumento da população e consequente redução proporcional de recursos (terras e alimentos), além de disputas causadas também pela concentração de renda (pessoas que ascenderam à burguesia, acumulando posses, contra pessoas comuns, não proprietários de terra). De acordo com Turchin, o ciclo total de ascensão e ruína de um império dura cerca de um milênio.

Porém dentro deste ciclo maior existem vários microciclos, de expansão (alta coesão social) e contração (baixa coesão social), que duram cerca de um século cada (aproximadamente 3 gerações): ocorrem o aumento populacional e a concentração de renda, iniciam-se os conflitos internos, com subsequente redução da população (tanto por conta dos conflitos, quanto também pela escassez de recursos), o que gera um aumento dos recursos per-capita. Outro fator para redução dos conflitos é o fato das pessoas literalmente se cansarem de matar uns aos outros. Só que após um novo miniciclo de expansão, os mesmos problemas de falta de recursos e desigualdades voltam a ocorrer. Além disto, a memória das dores do conflito se esvai. E aí inicia-se um novo miniciclo de contração.

O livro é um pouco antigo (2006), então ainda não haviam ocorrido as transformações que levaram o mundo aos choques existentes na atualidade, que ultrapassam fronteiras geográficas e mesmo as religiões. Estes conflitos ocorrem basicamente entre parcelas “integracionistas” (que querem integrar os diferentes – e se integrar aos diferentes) e parcelas “isolacionistas” (que querem que os diferentes se mantenham em suas “bolhas” – e que a sua bolha tenha mais privilégios que as demais) das populações. É o embate cidade X interior, progressistas X conservadores, população jovem X população de maior faixa etária, que vemos em diversas sociedades, especialmente nas democracias liberais ocidentais.

O assunto é interessante, mas o livro, sendo resultado de um trabalho acadêmico, é um tanto cansativo. Então não indicaria para quem realmente não é um aficionado por história (ou especificamente história de impérios, ou de alguns impérios).

Be happy 🙂

Heresia – Betty Milan (05/2022)

heresiaAntes de falar sobre o livro em si, vou primeiro fazer o “disclaimer”: eu acho que as pessoas deveriam ter autonomia para fazerem o que quiserem com os seus corpos e suas vidas, desde que as decisões sejam tomadas dentro de plenas capacidades mentais e sem pressões externas. E isto inclui até abdicar da própria vida em si.

Este romance, que tem como subtítulo “tudo menos ser amortal”, trata justamente da questão de até quando devemos prolongar a vida, ou no caso a sobrevida, de pessoas com doenças terminais ou em idade avançada. O livro conta a história de Lúcia, encarregada de cuidar da sua mãe, quase centenária e em estado avançado de Alzheimer.

Basicamente todo o romance gira em torno do sofrimento e da perda de dignidade da mãe da narradora, mas também do sofrimento e da perda de dignidade e liberdade do familiar (geralmente uma mulher) responsável pelos cuidados, já que internar em uma instituição ou então contar somente com profissionais seria um absurdo (segundo a cultura brasileira, pelo menos). E interromper a vida, mesmo a própria, é uma heresia (“só quem pode tirar a vida é Deus!”).

Em alguns momentos, por conta do mote e das discussões filosóficas, me lembrou o maravilhoso As Intermitências da Morte, do Saramago.

Apesar do assunto denso, a autora conseguiu colocar mesmo as situações mais “pesadas” de uma forma que, acima de tudo, nos faz refletir. Talvez o fato de Betty ser psicanalista tenha influenciado bastante. Eu particularmente gostei do livro, mas não sei se recomendaria para todo mundo. Acho que poucas pessoas estão preparadas para este tipo de reflexão.

Be happy 🙂

White Fang – Jack London (04/2022)

white_fangQuando escrevi sobre The Sea-Wolf, comentei no final que o Jack London não havia me cativado, mas que iria dar uma chance para White Fang num futuro não tão próximo. Como recebi um e-mail da Amazon com uma promoção do livro resolvi aproveitar e dar esta chance em menos tempo do que eu esperava.

A estória começa narrando a jornada de dois sujeitos encarregados de levar um caixão através das paisagens do noroeste da América do Norte durante o rígido inverno da região usando um dog sled, aqueles trenós de neve puxados por cães que vemos em filmes e desenhos. Na sequência, a narração logo muda de perspectiva e passa a narrar a jornada da matilha de lobos famintos que perseguia o trenó.

Nesta segunda fase da estória, o narrador descreve as situações que a matilha enfrenta durante o inóspito inverno e a escassez de presas. Ao final do inverno e com a matilha se espalhando, o foco recai sobre She-Wolf, uma híbrida de cão com lobo que fazia parte da matilha, os potenciais parceiros que a cortejam e a disputa (mortal) entre estes. Quando sobra somente um lobo após estas disputas e o casal finalmente copula, a estória novamente muda de perspectiva, desta vez para o “ponto de vista” do único filhote a sobreviver – White Fang.

É nesta fase, que abrange mais da metade do livro, que a estória fica interessante, com o narrador “traduzindo” toda a fase de aprendizado, o desenvolvimento da lógica e dos instintos, e até os sentimentos de White Fang.

No final achei mais interessante do que The Sea-Wolf, talvez por ser uma leitura mais fluída e com menos termos técnicos (e náuticos), apesar de ter tido que, em algumas vezes, recorrer ao Google para esclarecer algum termo de época ou regionalismo. Mas ainda assim, não é uma leitura que me agradou muito e o mais interessante do livro é justamente esta premissa de traduzir as ideias e sentimentos de um animal.

Uma curiosidade: “She Wolf” já foi usado como título e tema para várias canções, de artistas dos mais diferentes estilos, de Shakira ao Megadeth, passando por David Guetta.

Be happy 🙂