Nunca imaginei que um dia iria ler uma biografia do Santos-Dumont. Não que não o ache um personagem interessante e importante para a história, não só do Brasil, como do mundo, pois ele teve participação importante num dos inventos que mudaram os rumos da humanidade. O que sempre me afasta dos “heróis nacionais” é justamente a maneira como o povo em geral trata os brasileiros com algum destaque (esportivo, científico, artístico, político, etc). Ou é uma exaltação exacerbada, ou trata como piada, ou infringe a eles uma cobrança excessiva. Na maioria das vezes as três coisas acontecem alternadamente e, incrivelmente, até simultaneamente.
Imaginei menos ainda que leria uma biografia sobre Santos-Dumont escrita por um americano. Mas a minha amiga Rebeca me presenteou com este livro, que foi uma grata surpresa justamente por fugir da “canonização” que provavelmente ocorreria se o autor fosse brasileiro. Mas que ao mesmo tempo dá o devido valor à importância do bibliografado, enquanto faz algumas correções históricas, todas elas muito bem documentadas.
Também é muito interessante, como toda biografia, como uma fotografia do Zeitgeist, o espirito do tempo, em que o personagem viveu.
O livro começa traçando a árvore genealógica de Santos-Dumont, contando brevemente a história de seus antepassados, desde os avós paternos e maternos, e dá uma atenção especial em como o pai de Santos-Dumont se estabeleceu e fez fortuna. Depois, passa brevemente pela infância do futuro inventor e por sua adolescência até a sua primeira mudança para a Franca.
A partir dai o livro relata de forma detalhada, incluindo muitas citações de publicações e do próprio Santos-Dumont, todo o processo de educação e de contato de um jovem com as novidades de uma metrópole mundial durante a virada de século. Depois começa a detalhar todos os seus experimento e experiências. Interessante notar a forma educada e sem extremismos ou julgamentos que o autor usa para documentar a suposta homossexualidade de Santos-Dumont.
Durante todo o livro, o autor vai contando, paralelamente à historia de Santos-Dumont, o que ocorria na mesma época em relação à aeronavegação, desde os primórdios do balonismo. Então invariavelmente, quando se aproxima de 1906 (o “vôo” oficial do 14-bis ocorreu em 23 de Outubro de 1906), outros inventores que trabalhavam em “máquinas voadoras” também são apresentados, como Samuel Langley e os irmãos Wright. Estes já haviam inclusive iniciado os estudos e experimentos com aeronaves mais pesadas que o ar bem antes de Santos-Dumont, que até o início de 1906 ainda focava em balões dirigíveis.
Assim como boa parte das invenções e descobertas da humanidade, os equipamentos que nos permitem voar também são o resultado de geração e disseminação coletiva de conhecimento: eles se baseiam em várias descobertas anteriores que foram sendo aperfeiçoadas e complementadas por diversas pessoas em diferentes partes do mundo, simultaneamente. Em algum momento, alguma destas pessoas teria a “sorte” de conseguir uma versão funcional do invento ou de realizar a descoberta, ficando desta forma com a glória e marcando seu nome na história (e, em alguns casos, obtendo lucro).
O livro não foge à polêmica (somente para os brasileiros, importante citar), e eu também não vou fugir: Santos-Dumont foi o primeiro homem a controlar um dispositivo de vôo, foi o primeiro homem a desenvolver equipamentos pessoais de voo (os tão sonhados “carros voadores”, e não desenvolveu apenas um, mas dois: um mais leve que o ar e um mais pesado), ganhou diversos prêmios, etc. Mas não foi a primeira pessoa a voar num equipamento mais pesado que o ar.
Além das testemunhas dos experimentos dos irmãos Wright, que ocorriam desde 1903, os avanços apresentados por eles em 1908, quando finalmente (e com todas as patentes garantidas) apresentaram o seu equipamento de forma oficial ao mundo, não seriam possíveis sem vôos anteriores. E não adianta nem alegar que “ah, mas ele não saiu do chão por conta própria”, primeiro porque isto não importa, podia ser um planador, uma asa delta, ainda assim teria atingido o feito de ser o primeiro equipamento mais pesado que o ar a voar, e em segundo, tirando a forca dos próprios motores, as aeronaves dos Wright só contavam com a força da gravidade (quem usava uma catapulta era o Aerodrome do Langley, que nunca chegou a voar). O avião, como existe hoje, tem muito mais dos Wrights do que de Santos-Dumont.
Mas isto, de forma alguma, tira a importância de Santos-Dumont para o desenvolvimento da aeronavegação. Muito pelo contrário, além de todos os feitos citados anteriormente, alguns dos estudos conduzidos por ele e algumas das soluções encontradas quando dos seus experimentos com os equipamentos mais leves que o ar devem ter sido utilizados por outros inventores e construtores, inclusive os irmãos Wright, no desenvolvimento dos seus equipamentos. Até porque Santos-Dumont tornava público todos os seus esquemas e desenhos. Um pioneiro do “open source”.
Be happy 🙂
P.S. o livro traz uma curiosidade interessante: a corda guia. Sabe aquelas cordas que ficam penduradas nos cestos dos balões? Além de servir para “ancorar” o balão e para guiar o pouso (com a ajuda de pessoal em terra), ela tem a importante função de servir de lastro (ballast, outra curiosidade, esta cervejeira!). Explico: como o hidrogenio é um gás que se expande e se contrai muito rapidamente de acordo com a pressão, quando o balão está subindo, a expansão do gás poderia fazer com que ele “disparasse” para cima numa velocidade muito alta. O mesmo aconteceria durante o pouso: o gás contrairia a ponto de transformar o pouso numa “colisão com o solo”. Porém a corda serve como um lastro: enquanto ela esta no chão, ela nao gera peso para o balão, mas enquanto o balão está subindo, ela vai saindo do chão e gerando peso (lastro), impedindo assim a “disparada”, mesmo enquanto o hidrogênio se expande. O inverso também ocorre: durante o pouso, a medida em que o gás se contrai e acelera a queda, a corda vai sendo “deitada” no chão, reduzindo assim o peso do balão e desacelerando a descida. Solução simples mas genial!!!!